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O drama e as oportunidades de desbravar o interior do Brasil


Como a variedade e a intensidade das dores de tocar serviços de saúde numa realidade socioeconômica mais limitante que os grandes centros podem ser a chave para destravar o valor de soluções inovadoras


Serra Talhada, Sertão de Pernambuco, a 411 km de Recife. Na cidade banhada pelo rio Pajeú, fervilhando de oportunidades para empreendedores e berço de grandes nomes da história do estado, ainda é possível ver gente cavalgando pelas ruas asfaltadas e usuários de bancos tradicionais formando filas quilométricas para visitar os caixas, mas não surpreende encontrar uma ou outra destas pessoas usando smartwatches ou airpods.

Esta heterogeneidade quanto à intimidade com recursos tecnológicos, somada às limitações socioeconômicas e educacionais, garante todo um conjunto de dificuldades de prestar atendimento de qualquer natureza a esta população. Enquanto alguns conversam com maestria com chatbots e confirmam suas idas ao serviço de diagnóstico pelo web check-in, outros esbarram no analfabetismo, que não os impede de utilizar o WhatsApp, mas se perdem em centrais automatizadas ao tentar estabelecer a comunicação enviando apenas áudios.

Os recursos na cidade não são tão escassos, nem para a população e nem para os prestadores. Com uma economia pujante e acolhedora e olhos distantes direcionados para a cidade após o tema do Cangaço ter vencido o carnaval do Rio de Janeiro e ocupado o 2º lugar em São Paulo, o dinheiro (grande parte ainda em cédulas) circula livremente e torna a região atrativa para vários tipos de investimento, de destaque ainda maior na área da saúde.

Falamos aqui do 4º polo de saúde do estado de Pernambuco, com dois hospitais regionais, serviços públicos com atendimento de especialistas e uma rede privada recheada de médicos, cujo número tende a aumentar exponencialmente com os egressos da faculdade de medicina do campus da UPE localizado na cidade, curso inclusive que é o mais concorrido do vestibular da instituição. Serve como exemplo para ilustrar os argumentos, mas há várias Serras Talhadas espalhadas pelo País.

Em uma época em que as tecnologias chegam rapidamente às cidades interioranas, há uma verdadeira corrida dos gestores para buscar soluções que permitam que todo esse potencial seja aproveitado. Sem problemas a contornar quanto ao acesso a boas conexões de internet, soluções em nuvem e serviços de back office remotos têm se tornado a regra para a maioria das instituições que buscam inovar e otimizar os seus processos internos.

Porém, soluções front end ainda apresentam limitações intensas na interação com esta população, por se mostrarem demasiado complexas ou pouco intuitivas principalmente para os pacientes idosos, justamente aqueles que têm mais necessidade de utilizar as plataformas. Ainda há o problema de disponibilidade de mão de obra qualificada para utilizar e monitorar o uso destas ferramentas, o que muitas vezes torna o uso dos métodos manuais mais eficiente que os processos automatizados.

É aí que se encontra um rio de oportunidades. Num contexto de gestores abertos à inovação, com verba o suficiente para investimentos em tecnologia, mais tempo ocioso do parque assistencial na comparação com grandes centros e a capacidade de atacar os problemas de forma remota, não há dúvidas de que grandes e pequenas empresas deveriam olhar de forma mais intensa para as cidades do interior. Caso não o façam, virarão as costas para mais da metade da população brasileira (mais ainda se contarmos os moradores dos subúrbios metropolitanos com perfil de usuário similar), já que, segundo dados do IBGE de 2018, pelo menos 43% dos brasileiros moram em cidades de até 100 mil habitantes.

Numa época em que falamos intensamente da experiência do usuário e cuidados em saúde baseados na geração de valor e centrados no paciente, é urgente para aqueles que desejam montar soluções universais e acessíveis firmar parcerias justamente com quem está interagindo com estes usuários, seja para validar hipóteses ou produtos iniciais, seja para desenvolver soluções do zero, adaptar ferramentas existentes ou para aproveitar e expandir seu mercado de atendimento. É o teste final de usabilidade, que garantirá a capilaridade destas soluções e assegurará também um funcionamento mais adequado nas capitais. Com cerca de metade da população brasileira desejando participar da era da saúde digital, oportunidades não faltam para quem olhar com carinho para o interior do País.

Artigo escrito em parceria com Hugo Torres de Carvalho, médico radiologista, responsável técnico do setor de diagnósticos do Hospital São Vicente e sócio colaborador da Ultracordis. Publicado na coluna de maio de 2023 na MIT Sloan Management Review Brasil.