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Como o 5G e a IA podem promover inclusão na era da saúde digital

Motivos para acreditar nestes “trópicos utópicos”

Quando o Abaré, barco-hospital da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), atracou em Anumã, uma comunidade ribeirinha onde vivem 184 pessoas às margens do rio Tapajós, Edneia (nome fictício) já aguardava por sua primeira consulta de pré-natal. Com 33 anos e quase 9 meses de gestação, a mulher espera seu quinto filho após contrair malária enquanto acompanhava o marido em uma área de garimpo ilegal nas entranhas da Amazônia paraense. Durante a primeira ultrassonografia de sua vida, Edneia estranhou quando Dr. Ari, médico voluntário do Abaré (e autor deste texto) perguntou se ela gostaria de saber o sexo da criança: “E dá pra saber, doutor?”.

A espera e o desconhecimento de Edneia são o retrato do isolamento em que vivem populações ribeirinhas do Pará, estado com a menor proporção de médicos do país segundo dados do último estudo de demografia médica do Brasil (Conselho Federal de Medicina, 2020): 1,07 médico para cada mil habitantes, em comparação com a média nacional de 2,49. Os índices são ainda mais alarmantes quando se considera que a maior concentração de profissionais está na capital Belém, em detrimento do interior do estado, onde o índice atinge 0,4 médicos por mil habitantes e ainda se observam cidades sem um único médico em situação regular.

 “Se tudo chega por barco, a saúde também deve chegar”. A frase, dita por um dos membros da ONG Zoé, que desde 2019 leva médicos de grandes hospitais de São Paulo (como o Dr. Ari) para oferecer atendimento especializado às populações ribeirinhas do Pará, expressa com poder de síntese o que os gestores das políticas públicas de saúde não conseguem garantir, perpetuando o status de cidadania precarizada dessas populações.

No entanto, óbices logísticos relacionados à oferta de atendimento médico em um país de dimensões continentais não são uma prerrogativa do Brasil. Países desenvolvidos como Estados Unidos, Canadá e Austrália também enfrentam sérios desafios relacionados à distribuição desigual de profissionais de saúde, sobretudo de médicos especialistas. A experiência recente desses países, agravada pelas medidas de isolamento social durante a pandemia de COVID-19, mostra que o enfrentamento dos problemas exige mais do que ações pontuais, mas fluxos bem organizados e hierarquizados, não necessariamente de altos custos.

No caso da Austrália, amplos investimentos em infraestrutura de saúde digital permitiram uma expansão expressiva da telessaúde no interior do país na última década. Considerando-se que o funcionamento adequado dos serviços de saúde digital depende de tecnologias de comunicação eficientes, o governo australiano iniciou ainda em 2007 a construção de uma rede de telecomunicações de fibra óptica que atualmente fornece acesso de banda larga a 93% da população, incluindo wireless fixo e satélites nas áreas rurais. Além da expansão da infraestrutura, o país foi pioneiro na regulamentação do uso de tecnologias digitais em saúde. Durante a pandemia, governos de outros países como Canadá e Estados Unidos também ajustaram rapidamente as suas regulamentações, com mudanças que resultaram em um crescimento significativo do uso dessas novas tecnologias.

No Brasil, a prática da telemedicina foi regulamentada em modalidades como teleconsulta e telediagnóstico pelo Conselho Federal de Medicina em fevereiro deste ano. Em 2020, o Ministério da Saúde lançou um documento intitulado “Estratégia de saúde digital para o Brasil (2020 – 2028)”, um plano de ação das atividades a serem realizadas para a implementação da saúde digital no país. O documento cita a informatização dos estabelecimentos de saúde, incluindo o uso de fibra óptica, satélite ou rádio para atender às especificidades de região. Se pensarmos na vastidão da Amazônia brasileira, onde os serviços de telefonia móvel ainda funcionam precariamente em 2022, tais tecnologias ainda podem parecer tão ficção científica quanto se descobrir o sexo de um bebê por ultrassonografia.

Por outro lado, se nos resta resgatar algum viés de otimismo diante de tamanhos desafios, é preciso dizer que toda crise é capaz de abrir uma fresta, pequena que seja, de oportunidade e esperança. Em seu livro “Trópicos Utópicos” (2016), o filósofo e economista Eduardo Gianetti nos convida a pensar o Brasil em uma utopia de projeto próprio, onde um país “genetica e culturalmente fusionado” pode ensinar ao mundo como conciliar ciência, tecnologia e crescimento econômico. Em uníssono com Gianetti, a cientista política Ilona Szabó reafirma o potencial do Brasil em “desenvolver pesquisas e inovações nas áreas de ciências biológicas, naturais e biotecnologia que garantam a inclusão do país na economia do futuro” (“Amazônia como solução”, Folha de São Paulo, 14/06/2022), propondo a inclusão da floresta na centralidade de um novo projeto sustentável de país que alie o poder transformador da tecnologia com as necessidades de suas populações. É no intuito de discutir e estimular a transformação digital sustentável e responsável também na esfera da saúde pública que dois médicos e cientistas (ainda otimistas) ocupam o espaço desta coluna.

Voltando à Amazonia, a logística complexa e o custo relativamente alto dos transportes na região limita sobremaneira o acesso de populações que vivem em áreas mais remotas aos equipamentos de saúde. Em seu recente documento “A grande oportunidade para a saúde digital na América Latina e Caribe” (2022), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) exemplifica em números como os investimentos em tecnologias digitais em saúde podem desempenhar um papel fundamental no controle de custos e na distribuição eficiente dos recursos no setor, inclusive com impacto ambiental ao reduzir a emissão de CO2 relacionada ao transporte terrestre de longas distâncias. O documento cita ainda a possibilidade de parcerias público-privadas e a necessidade de uma cultura de criatividade e inovação entre os empreendedores da transformação digital da saúde em todo o continente. É importante lembrarmos ainda que qualquer ação nesse contexto deve considerar as diferenças, os saberes e os valores das populações originárias e ribeirinhas, sem cair no clichê do assistencialismo ou da generosidade salvadora.

Na era da saúde digital, o uso de recursos de inteligência artificial (IA) e das redes 5G tem papel fundamental para otimizar a gestão, ampliar o acesso e garantir a equidade no emprego de recursos do sistema de saúde, especialmente em países com dimensões continentais como o Brasil. O país de Edneia, que conta com o maior sistema público de acesso universal à saúde do planeta, tem o potencial (ou talvez a missão) de acelerar e revolucionar o desenvolvimento de algoritmos de IA treinados e validados em grandes bancos de dados unificados, incluindo subanálises com amostras robustas e não enviesadas de populações com acesso limitado a outros sistemas de saúde mais excludentes, como negros, mulheres e indígenas. O reconhecimento e mapeamento das desigualdades de acesso das diferentes populações aos sistemas de saúde, interseccionadas em questões de raça, gênero ou região, é o primeiro passo a ser dado nessa direção; a disponibilização de acesso à internet em regiões remotas por meio da tecnologia 5G é mais uma inovação que pode ajudar a prover conhecimento e informação para diversas pessoas até então vivendo em total exclusão digital.

Por fim, balizando-se o otimismo com os complexos entraves reais, resta-nos acreditar no futuro do país do filho de Edneia. País este onde algoritmos de IA responsáveis e eficientes certamente não serão utopia; e onde um sistema de saúde digital, inclusivo e equitativo será uma realidade cada vez mais próxima de quem precisa.

 

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Artigo escrito em parceria com Ari Araújo, médico radiologista do Hospital Sírio-libanês e do Grupo Fleury, atualmente integrando o programa de jovens líderes da Academia Nacional de Medicina e o Global Outreach Committee da Society of Thoracic Radiology (Estados Unidos). Publicado na coluna de agosto de 2022 da MIT Sloan Management Review Brasil.