A telemedicina é caminho sem volta. E o maior beneficiado é o paciente.


Março de 1876: primeiro atendimento por telemedicina da história. O paciente, Graham Bell, acabara de inventar o telefone.

Nas últimas semanas, o noticiário foi inundado por informações sobre o atendimento médico à distância, conhecido como telemedicina. De acordo com a resolução 2.227/18 do Conselho Federal de Medicina (CFM), publicada no Diário Oficial da União em 6 de fevereiro de 2019 e prevista para entrar em vigor em 3 meses, os médicos brasileiros passam a ter, assim como seus colegas de outros países, direito a exercer consultas médicas, diagnósticos, interconsultas, monitoramento, triagem e cirurgias à distância, com o auxílio de soluções tecnológicas, desde que cumpridos requisitos de segurança, sigilo e registro das informações e tendo como premissa obrigatória o prévio estabelecimento de uma relação presencial entre médico e paciente.

Embora já regulamentada e empregada em diversos países há muitos anos, a telemedicina, até então, era proibida no Brasil. Se fizermos uma retrospectiva, talvez o primeiro atendimento por telemedicina tenha sido realizado em março de 1876 por Tom Watson, assistente de Alexander Graham Bell, após este acidentalmente derramar ácido sobre sua mesa de trabalho e solicitar ao seu assistente: “Mr. Watson, come here. I want to see you”, episódio que concretizou a primeira comunicação telefônica feita na história. Alguns anos depois, em janeiro de 1915, no que ficou marcado como a primeira ligação telefônica transcontinental, conectando Nova York a San Francisco, Graham Bell, de um lado da linha, repetiu o apelo a seu assistente: “Mr. Watson, come here. I want to see you”. Desta vez, contudo, Tom Watson não estava na sala ao lado, mas no outro extremo dos Estados Unidos, respondendo com uma frase que se tornou famosa ("It would take me a week") e que marca, em uma linha do tempo de mais de 100 anos, a evolução tecnológica para conectar pessoas rapidamente, sem a necessidade das suas presenças físicas.

Nos anos seguintes, vários outros acontecimentos reforçaram a importância da telemedicina em âmbito global.

• 1936: o transatlântico Queen Mary passa a ser o primeiro da história a sair para navegação com um radiotelefone para consultas médicas a bordo;

• 1960: início da telemedicina em várias especialidades (Radiologia, Patologia, Dermatologia), com uso de circuito fechado de TV;

• 1970: início da telemedicina com auxílio do computador. A NASA começa a empregar telediagnósticos, por meio de ultrassonografia e ecocardiografia, em suas estações espaciais.


Nos Estados Unidos, um dos primeiros países a adotar a nova tecnologia, a telemedicina rapidamente ganhou corpo. Principalmente no setor de telediagnósticos, com o impulso da telerradiologia, a maior parte dos médicos americanos começou a se utilizar da telemedicina, tanto por questões de praticidade, quanto por falta de médicos para suprirem a assistência em todo o território do país. A possibilidade, no caso da telerradiologia, de poder avaliar as imagens do paciente em qualquer momento, de qualquer lugar, rapidamente conquistou os médicos e, consequentemente, os pacientes, que passaram a ter a possibilidade de acesso a mais especialistas, sistemas de segunda opinião e resultados mais rápidos e precisos.

No Brasil, por muitos anos a telemedicina sofreu diversas restrições, requerendo a presença de um profissional médico nas duas pontas da comunicação, inviabilizando o sistema para a maior parte dos atendimentos. Com o desenvolvimento tecnológico, que como sempre precede a regulamentação, novas ferramentas além do telefone foram surgindo, tais como Skype, Facetime e WhatsApp. Alguns conselhos de profissões da área de saúde, como o de Psicologia, foram mais céleres na regulamentação e detalhamento do atendimento à distância. Os conselhos médicos, infelizmente, não se posicionaram assertivamente, fazendo com que médicos que atendessem pacientes por soluções à distância (telefone, e-mail, WhatsApp) estivessem incorrendo em ilegalidade e desvio ético, além de não poderem ser remunerados pelo seu atendimento. Além disto, em caso de recusa ou demora ao atendimento ao paciente nessas condições, corriam o risco de serem vistos pelos pacientes como "médicos antiquados" ou até mesmo agentes de omissão de auxílio e socorro.

Apesar do tema já estar em discussão há alguns anos no nosso país, a resolução do CFM gerou protestos dentro da comunidade médica, com posições contrárias e a favor. Os defensores da medida afirmam que a resolução simplesmente regulamenta recursos já amplamente usados pela comunidade médica, como a troca de mensagens de texto, discussão de sintomas e tratamento por telefone e compartilhamento de fotos pelo celular para pedido de assistência médica (frequente, por exemplo, em especialidades como Pediatria, Radiologia e Dermatologia) e/ou segunda opinião. Afirmam que a tecnologia ajudará a suprir com atendimento médico regiões distantes, contribuindo para o bem estar dos moradores de áreas remotas, assim como possibilitará atendimentos mais rápidos e precisos mesmo para moradores de grandes cidades, com mobilidade urbana reduzida. Mesmo tendo o CFM sido conservador em relação a outros países, expressando a necessidade da primeira consulta de forma presencial (exceto em regiões remotas) e recomendando consultas presenciais a cada 4 meses em casos de doenças crônicas ou acompanhamentos a longo prazo, críticas não faltaram. Os detratores da medida alegam que a telemedicina reduzirá os honorários médicos, inviabilizará a criação de uma carreira de estado, não contará com infra-estrutura tecnológica adequada e beneficiará apenas os proprietários das empresas de telemedicina.

Na minha opinião, a resolução do CFM, ainda que tardia, é digna de aplausos. Ao permitir e regulamentar o que já é realizado por inúmeros médicos e pacientes, de forma a cada vez mais frequente e quase sempre desordenada, a medida tem o potencial de aumentar o acesso à saúde no Brasil, reduzir a desigualdade, evitar deslocamentos desnecessários, diminuir o número de internações, melhorar a qualidade do diagnóstico e racionalizar os custos com a saúde, a cada vez maiores e menos sustentáveis em nosso país.

Os argumentos contra a telemedicina, na minha opinião, são frágeis. Alegar que o atendimento médico feito à distância não terá a qualidade da consulta presencial é generalizar e subestimar profissionais que optarem por esta modalidade de atendimento, além de fazer vista grossa aos inúmeros atendimentos médicos presenciais de má qualidade, feitos em tempo relâmpago e sem foco no paciente. Mencionar que há riscos de fraude, erros médicos e segurança das informações é ignorar que os mesmos problemas não só podem como já acontecem no mundo físico.

Em resumo, a telemedicina veio para ficar, buscando facilitar e agilizar o acesso a especialistas, reduzir deslocamentos desnecessários, permitir remuneração por atendimentos feitos à distância e fora do horário de trabalho do médico e ajudar a equacionar os gastos com a saúde. Não deve ser encarada como um fim em si só, mas como meio; em um país de dimensões continentais, com dificuldade para atendimento médico em áreas remotas e problemas crescentes de mobilidade urbana, ir contra o avanço tecnológico parece-me muito mais uma questão de corporativismo, manutenção do status quo e desatenção com o maior beneficiado da mudança: o paciente.


Publicado em fevereiro de 2019 no LinkedIn.